quarta-feira, 30 de março de 2011

Resumo 10 - Elementos do Estado - Povo

II – Do Estado (continuação)

3. Elementos do Estado Moderno (continuação)

3.2. Povo


“Os nazistas começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda classe) e separando-os do mundo para ajuntá-los em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás, haviam apalpado cuidadosamente o terreno e verificado, para a sua satisfação, que nenhum país reclamava aquela gente. O importante é que se criou uma condição de completa privação de direitos antes que o direito à vida fosse ameaçado” (Hannah Arendt, Origens do totalitarismo).


Introdução. Povo é o elemento humano do Estado, não podendo haver Estado sem povo. Povo é o conjunto de pessoas que mantêm um vínculo jurídico-político com o Estado. Segundo Kelsen, povo é o âmbito pessoal de validade da ordem jurídica estatal. Trata-se de um conceito jurídico, que não deve ser confundido com população nem com nação.

Não se confundem com povo:

População. Conceito meramente demográfico, população é o conjunto de pessoas que habitam o Estado, independentemente de terem ou não um vínculo com este, incluindo, assim, os estrangeiros e apátridas que apenas residam no Estado.
Nação (Dallari, Cap. III, itens 68 a 71). Conceito político, de fundo cultural e sociológico, nação pode ser definida como “grupo humano no qual os indivíduos se sentem mutuamente unidos, por laços tanto materiais como espirituais, bem como conscientes daquilo que os distingue dos indivíduos componentes de outros grupos nacionais” (Hauriou).
• O conceito de nação foi utilizado para estimular o sentimento popular em favor da unificação do povo quando da formação dos Estados Modernos, por isso também chamados de Estados Nacionais. Mas trata-se de um conceito impreciso, havendo uma grande dificuldade de se saber o que qualifica um grupo humano como nação (“raça”, língua, religião, costumes?).
• Conforme Dallari, baseado em Tönnies, nação é comunidade, diferindo de sociedade porque: é um fato social e não depende de um ato voluntário nem possui uma finalidade determinada por seus membros; não exerce atividades juridicamente organizadas e não tem um poder regulado pelo direito.
• Segundo alguns autores, especialmente os de esquerda, trata-se de um mito romântico, sem base histórica, explorado pela burguesia para alcançar e manter o poder. Para Dallari, nação é uma criação artificial, com forte conotação emocional. Segundo Carl Deutsch, “uma nação é um grupo de pessoas unidas por um erro comum acerca de seus antepassados e um desgosto comum por seus vizinhos”.
• Já para Miguel Reale, a nação é uma realidade histórica, o mais alto grau de integração social. Segundo Del Vecchio, Estados que não correspondem a uma nação são Estados imperfeitos. E Burdeau escreve que, nos primeiros Estados Modernos, a nação fez o Estado, mas nos mais novos o Estado deve fazer a nação.
• No final do século XIX e início do século XX, houve exacerbação e deturpação do nacionalismo, gerando o colonialismo, o racismo e o nazi-fascismo
• Há nações sem Estado (judeus antes de 1948, curdos, tibetanos etc.), Estados sem nação (Vaticano, Brasil em 1822) e Estados com mais de uma nação (antiga URSS, ex-Iugoslávia, etc.). Até mesmo algumas comunidades indígenas são às vezes chamadas de “nações”.
• O fato é que povo não se confunde com nação, e o Estado não precisa de uma nação para existir, mas sim de um povo, não importando se esse povo constitui ou não uma nação.
• Concluindo, para a Ciência Política e a Teoria Geral do Estado, o elemento pessoal do Estado é o povo, e não a população ou a nação, como erroneamente escrevem alguns autores.

O povo na história. Nos Estados Antigos, não havia povo propriamente dito, mas apenas súditos, pois a população era inteiramente submetida aos governantes e não havia direitos políticos. Os grandes impérios podiam abranger vários povos e nações diferentes. Na Grécia, o povo era o conjunto de cidadãos de uma pólis, sendo estes apenas uma minoria que possuía direitos políticos. O mesmo ocorria em Roma. Na Idade Média o conceito era impreciso, pois o poder político estava disperso e muitas vezes superposto. A grande maioria das pessoas não tinha direitos políticos e o poder político era concentrado nas mãos de uma minoria. No Estado Moderno, o poder político é centralizado e unificado, identificando-se precisamente quem era o povo de cada Estado. Com o contratualismo, o povo passa a ser visto como o titular do poder soberano. Sob a influência de autores como Marsílio de Pádua e Rousseau, passa-se de uma noção aristocrática para uma noção democrática de povo, estendendo-se os direitos políticos a camadas cada vez maiores da população.

Conceito jurídico de povo. Segundo Jellinek, povo é o conjunto de pessoas ligadas ao Estado por um vínculo jurídico permanente que lhes confere os direitos públicos subjetivos. O povo, como elemento formador do Estado e a este ligado por um vínculo jurídico, é ao mesmo tempo sujeito e objeto do poder. Sob o aspecto subjetivo, o povo participa do poder do Estado, ou seja, age, é sujeito de direitos. Ao mesmo tempo, sob o aspecto objetivo, o povo está submetido ao poder do Estado, isto é, tem deveres, é súdito.

Direitos públicos subjetivos. Segundo Jellinek, como conseqüência do reconhecimento do vínculo jurídico do povo com o Estado, surgem três tipos de obrigações deste em relação aos seus cidadãos.
Atitudes negativas: estabelecem limites ao poder do Estado em sua relação com os cidadãos; são os direitos individuais, principalmente os vários aspectos da liberdade (liberdade de locomoção, de crença, de expressão etc.)
Atitudes positivas: estabelecem obrigações do Estado para com os cidadãos, como, por exemplo, a obrigação de proteção aos cidadãos, o direito de ação perante o Judiciário e os direitos sociais (saúde, educação, previdência social etc.)
Atitudes de reconhecimento: estabelecem a obrigação do Estado de reconhecer a participação dos cidadãos como seus órgãos, seja agindo em nome dele (diplomatas, chefes de governo), seja contribuindo para a formação da sua vontade, expressa pela lei e pelas decisões políticas (agentes políticos), seja ainda pelo exercício dos direitos políticos (votar e ser votado, participar do Júri, etc.).

Segundo Jellinek, essas obrigações do Estado correspondem a direitos dos cidadãos, que são chamados de direitos públicos subjetivos, porque são direitos subjetivos (próprios dos cidadãos que se enquadram num direito objetivamente previsto) voltados à esfera pública (relação com o Estado). Apenas os membros do povo de um Estado são titulares de direitos públicos subjetivos perante esse Estado.

Nacionalidade e cidadania. Os membros do povo são chamados de nacionais ou cidadãos. Muitos autores (Celso Bastos, José Afonso da Silva etc.) consideram que cidadão é apenas quem possui direitos políticos (votar e ser votado). Assim, todo cidadão é nacional, mas nem todo nacional é cidadão, embora faça parte do povo. Esse entendimento está de acordo com a Constituição brasileira, que chama os brasileiros de nacionais e não define cidadania. Os termos “nacionais” e “nacionalidade”, porém, são incorretos, pois referem-se a nação, que é um conceito impreciso e não regulado pelo direito. Mais correto seria usar o termo cidadania, como faz, por exemplo, a Itália.

Conceito amplo de cidadania. Segundo Jellinek e Dallari, todos os membros do povo (“nacionais”) são também cidadãos. Aqueles que passam a gozar de direitos políticos são cidadãos ativos. Embora minoritária, preferimos esta linha, pois ela não exclui do conceito de cidadania os que estão privados dos direitos políticos (menores de 16 anos, condenados criminalmente, doentes mentais etc.).

Reconhecimento da nacionalidade. Cada Estado define, na sua legislação, os critérios para o reconhecimento ou aquisição da sua nacionalidade (ou cidadania), ou seja, é a lei do Estado que diz quem faz parte do povo. A nacionalidade pode ser primária (originária, desde o nascimento) ou secundária (adquirida posteriormente ao nascimento, por estrangeiro ou apátrida, através da naturalização). Há dois critérios utilizados pelos Estados para o reconhecimento da nacionalidade (ou cidadania): o jus sanguinis (direito do sangue) e o jus soli (direito do solo). Pelo jus sanguinis é nacional o filho de nacional, não importa onde nasça (ex.: Itália, Espanha). Pelo jus soli é nacional aquele que nasce no território do Estado (ex.: Brasil, Argentina). Embora use predominantemente o jus soli, o Brasil também utiliza o jus sanguinis, considerando brasileiro o nascido no exterior, filho de brasileiro(a), desde que seja registrado em repartição diplomática brasileira ou filho de brasileiro(a) a serviço do Brasil. O estrangeiro pode adquirir a nacionalidade brasileira, passando a fazer parte do povo, desde que cumpra os requisitos da Constituição. O brasileiro nato só perde a nacionalidade se assumir outra. O brasileiro naturalizado pode perder a nacionalidade também em outros casos, como a prática de crime.

A lição de Hannah Arendt. Filósofa alemã de origem judia, Hannah Arendt (1906-1975) migrou para os EUA devido à perseguição nazista aos judeus na Europa. Lá lecionou em universidades e publicou vários livros de filosofia e política. Para ela, a política deveria ser a atividade mais nobre do ser humano. Na obra Origens do totalitarismo, observando a situação de cerca 50 milhões de europeus que ficaram desprotegidos porque perderam a cidadania em conseqüência das duas guerras mundiais, e especialmente o caso dos 6 milhões de judeus exterminados nos campos de concentração nazistas, ela chega à conclusão de que a cidadania, ou seja, o pertencimento ao povo de um Estado, é direito básico do ser humano, que ela chamou de “direito a ter direitos”. Sem esse direito básico, a pessoa fica desprotegida e todos os seus demais direitos, até mesmo o direito à vida, ficam ameaçados. Por isso, a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, de 1948, estabelece que ter uma nacionalidade é um dos direitos fundamentais do ser humano.

Para discussão. O brasileiro, filho de italiano, que adquire a cidadania italiana, perde a nacionalidade brasileira ou passa a fazer parte de dois povos? Qual a nacionalidade de um filho de brasileiros que nasce num navio de passageiros de bandeira panamenha navegando no mar territorial argentino?


Leitura essencial: Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo II, itens 44 a 47, e Capítulo III, itens 68 a 71.

Leituras complementares: Jellinek, Teoría General del Estado, Livro III, Cap. 13, item II. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, Parte II, Cap. 5.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Resumo 9 - Elementos do Estado - Território

II – Do Estado (continuação)

3. Elementos do Estado Moderno

3.1 Território


“Nenhum povo teria pátria se tivesse que devolver as terras que tomou” (Cícero, Da República)

Introdução. Com a formação dos Estados Modernos, foram delimitadas as fronteiras entre os Estados e, dentro delas, passou a vigorar um único poder soberano. Essa base geográfica do poder é o território. No mundo antigo e na Idade Média não havia a noção de território como elemento do Estado. Na antiguidade, havendo grandes espaços desabitados, não havia preocupação com limites territoriais. Para os antigos gregos e romanos, o Estado era o conjunto dos cidadãos sob a mesma lei. Na Idade Média, vários poderes se misturavam num mesmo território. Somente com o Estado Moderno é que o território passou a ser considerado como elemento essencial do Estado. Isso significa que, hoje, não pode haver Estado sem território.

Natureza jurídica do território. Conforme Paulo Bonavides, há quatro teorias para explicar a natureza jurídica do território:

território-patrimônio: segundo essa teoria, o território seria propriedade (dominium) do Estado. É uma concepção medieval, pois nessa época os senhores e os reis eram considerados proprietários de seus domínios. Essa concepção foi superada, pois conflita com a noção de propriedade privada.
território-objeto: segundo essa teoria, o Estado exerceria um direito real de caráter público, chamado domínio eminente, sobre o território. Esse direito poderia ser combinado com o domínio útil exercido pelo cidadão. Essa teoria também foi descartada porque não se admitem dois direitos de propriedade sobre a mesma coisa.
território-espaço: Segundo Jellinek, o poder que o Estado exerce sobre o território é um poder exercido sobre pessoas, ou seja, de imperium. Esse poder difere do exercido sobre coisas, que é o dominium. Assim, o poder do Estado sobre o território seria decorrência de seu poder sobre as pessoas que nele vivem. Essa teoria tem dificuldade para explicar o poder exercido sobre áreas desabitadas do Estado.
território-competência: Segundo Hans Kelsen, o território é o âmbito espacial de validade da ordem jurídica estatal, ou seja, o espaço físico no qual vigora o poder soberano de um Estado, com exclusão dos outros. É a teoria mais aceita atualmente.

Limites do território. Nos limites do território somente um Estado pode agir soberanamente, pois não se a admite a convivência de duas soberanias no mesmo território. Sobre os fatos ocorridos dentro do seu território o Estado exerce a jurisdição civil e criminal. O princípio da impenetrabilidade proíbe a violação do território de um Estado.

Abrangência do território. A noção de território abrange não só a porção de terra sob o poder de um Estado, mas também as águas interiores, o mar territorial, o espaço aéreo e o subsolo.

Fronteiras geográficas. As fronteiras geográficas são limites estabelecidos internacionalmente, determinados por acidentes geográficos (rios, montanhas etc.) ou por uma linha imaginária, separando os Estados.
Mar territorial. É uma faixa de mar do litoral do Estado sobre a qual este a exerce soberania, inclusive sobre o espaço aéreo e o subsolo. Tradicionalmente, o mar territorial servia para fins de defesa, estabelecendo-se o seu limite segundo a potência dos canhões dos navios. Mais tarde, levando em conta fatores econômicos, o Direito Internacional consagrou o limite de 3 milhas. Alguns Estados pretenderam estender o mar territorial para 12 e depois para 200 milhas, o que, a princípio, não foi aceito pela comunidade internacional por ferir o princípio da liberdade dos mares. Segundo uma convenção da ONU de 1982, o limite passou a ser de 12 milhas náuticas (cerca de 22 Km), respeitado o direito à passagem inocente. A lei brasileira estabelece unilateralmente o limite de 200 milhas como zona econômica exclusiva, com soberania limitada, o que é tolerado, mas ainda não aceito expressamente pela comunidade internacional.
Espaço aéreo. O Estado exerce soberania sobre o espaço aéreo correspondente ao seu território. O Direito Internacional estabelece o direito à passagem inocente de aeronaves sobre o espaço aéreo dos Estados, ressalvando a possibilidade de controle e fiscalização. Não há limite definido para o que se considera espaço aéreo, considerando-se que este vai até a altitude em que possam trafegar os aviões. Essa soberania não se estende sobre o espaço exterior, sendo livre a circulação de satélites e naves espaciais.
Subsolo. A soberania do Estado inclui o subsolo correspondente ao território, não havendo um limite de profundidade. A água e as jazidas minerais do subsolo, inclusive o petróleo, pertencem ao Estado e não ao proprietário do solo superficial.

Extraterritorialidade. Para possibilitar as relações internacionais e o trânsito de pessoas e mercadorias, os Estados auto-limitam a sua soberania, abrindo exceções à soberania dentro do seu território e regulamentando a territorialidade dos meios de transporte internacionais. Essas exceções são reguladas pelo Direito Internacional, sendo objeto de vários tratados e convenções.

• As representações diplomáticas e os agentes diplomáticos, mesmo fora do local de trabalho, gozam de imunidade, sendo submetidos à lei do Estado que representam.
• Os navios civis estão sujeitos à lei do Estado cuja bandeira ostentam, enquanto estiverem no mar territorial desse Estado ou em alto-mar. Estão sujeitos à soberania de outro Estado quando ingressam no mar territorial deste.
• Os navios e submarinos oficiais ou militares gozam de imunidade e estão sujeitos à lei do Estado de origem onde estiverem.
• As aeronaves civis estão sujeitas à lei do Estado no qual estão matriculadas enquanto estiverem sobre o território deste ou sobrevoando o alto-mar. Quando ingressam no espaço aéreo correspondente ao território de outro Estado, passam a ser submetidos à soberania deste.
• As aeronaves oficiais e militares gozam de imunidade e estão sujeitos à lei do Estado de origem onde estiverem.
• Embora submetidas às leis do Estado de origem, as embarcações e aeronaves oficiais e militares estão sujeitas a fiscalização e controle do Estado em cujo território estiverem.

Para discussão. Diante do que foi estudado, como resolver os seguintes casos: um Estado é invadido e dominado por outro, mas seu governo muda-se para um Estado aliado (Polônia durante a II Guerra Mundial); um Estado cujo território desaparece (Nauru e Maldívias).

Bibliografia
Leitura essencial: Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo II, itens 39 a 43.
Leituras complementares: Paulo Bonavides, Ciência Política, Cap. 6. Celso D. Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Público, Livro VI.

sábado, 12 de março de 2011

Resumo 8 - Evolução histórica do Estado

II – Do Estado (continuação)

2 – Evolução histórica do Estado (tipos históricos de Estado)


“O que pedimos à história não é um romance das origens, é a explicação do presente” (Burdeau)

Introdução. Georg Jellinek (1851-1911), considerado o pai da Teoria Geral do Estado, foi juiz, filósofo do Direito e professor da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Em sua obra fundamental, Allgemeine Staatslehre (Teoria Geral do Estado), ensina que, embora ao longo da história exista uma enorme variedade de organizações políticas, é possível encontrar algumas características permanentes que fazem de um Estado ou um grupo de Estados um tipo especial. O autor divide os tipos históricos de Estado conforme a organização política e o papel nela desempenhado pelo indivíduo. No estudo que faz sobre os tipos históricos de Estado, o autor destaca as características que considera essenciais para o conhecimento do Estado Moderno.

Tipos históricos de Estado. Jellinek classifica os tipos históricos de Estado em Estado Antigo; Estado Grego; Estado Romano; Estado Medieval e Estado Moderno.

a) Estado Antigo, também chamado de oriental e teocrático. São os grandes impérios da antiguidade (Egito, Pérsia, Assíria, Babilônia etc.). Suas principais características são:
natureza unitária (família, religião, Estado, economia englobados num todo, sem consideração do indivíduo)
religiosidade (teocracia: o poder deriva da divindade, sendo o governante considerado um deus ou representante deste – uma exceção era Israel)
despotismo (poder monárquico exercido de forma autoritária, quase sem limites)

b) Estado Grego. Próprio da Grécia antiga (776 e 323 a.C), caracterizado pela cidade-Estado (pólis), que era a reunião dos cidadãos, sem preocupação territorial (Ex.: Atenas, Esparta, Corinto, etc.). Características:
autarquia (governo e leis próprios)
auto-suficiência
liberdade política (participação direta do povo nas decisões políticas e no exercício dos cargos públicos)
ausência da noção de direitos individuais (opostos contra o Estado e limitando a interferência deste), porque o cidadão só existia como parte do Estado
• restrições à liberdade individual (religião do Estado, regras para o vestuário etc.)
conceito restrito de cidadania (o “povo” era composto somente dos homens livres, maiores de idade, e nascidos na cidade ou descendentes destes, o que representava cerca de 10% a 15% da população)

Liberdade dos antigos x liberdade dos modernos. O autor francês Benjamin Constant teorizou sobre a liberdade dos antigos, caracterizada pela ampla participação política, porém sem a noção de direitos individuais, contraposta à liberdade dos modernos, caracterizada pelo respeito aos direitos individuais, mas com baixo grau de participação política.

c) Estado Romano. Roma nasceu em 753 a.C. como cidade-Estado (civitas), da união de várias gens (grandes famílias, chefiadas pelos patriarcas, ou patres). Foi primeiro reino (monarquia), depois república (509 a.C.) e finalmente império. Expandiu-se por quase toda a Europa e parte do Oriente Médio e norte da África, mas manteve as características de cidade-Estado semelhantes às da Grécia, pois todas as decisões políticas eram tomadas em Roma e somente cidadãos romanos tinha direitos políticos. Suas instituições políticas e jurídicas mais importantes foram desenvolvidas durante o período republicano. Os cargos mais importantes (magistraturas) eram exercidos pelos patrícios (descendentes dos fundadores). O Senado era o órgão político mais importante. Dois senadores exerciam uma espécie de poder executivo (consulado). Os cidadãos romanos eram consultados pelo Senado e votavam em praça pública sobre as leis e outros assuntos importantes. Com o tempo, os cidadãos foram ampliando seus direitos políticos. Havia limites ao poder do Estado, pois o poder do pater familias era absoluto sobre a família. Nasce a distinção entre Direito Público e Direito Privado. Com um golpe de Estado, Julio César tomou o poder, apoiando-se no povo, mas foi assassinado por senadores (44 a.C.). Depois de uma guerra civil, seu sobrinho, Otávio, transformou-se em imperador, centralizando o poder e iniciando a destruição das instituições republicanas. A partir daí, o Senado foi perdendo a importância e a cidadania romana foi sendo concedida a outros habitantes do império, ao mesmo tempo em que os cidadãos perdiam sua liberdade política. Com o grande crescimento territorial, o cristianismo e as invasões bárbaras vieram a crise e a queda do Império Romano (476 d.C.).

d) Estado Medieval. Com a queda do Império Romano, o mundo ocidental sofreu uma dispersão do poder político. As cidades foram abandonadas e o povo foi viver no campo sob a proteção de um grande latifundiário. Estabeleceu-se o sistema feudal, pelo qual se criavam laços de fidelidade rígidos e hierarquizados entre as pessoas, desde o servo da gleba e o senhor até os reis, o imperador e o papa. Um senhor podia ser vassalo de outro senhor ou de um rei, que por sua vez podia ser vassalo do imperador ou do papa. As invasões bárbaras criaram pequenos reinos, que tinham pouco poder, pois os senhores feudais eram absolutos em seus domínios e havia interferências do imperador e do papa. O cristianismo passa a exercer grande influência e a Igreja ganha poder, pretendendo unificar a cristandade sob sua direção. Forma-se no ano 800, com apoio do papa, o Sacro Império Romano-Germânico, sob a direção de Carlos Magno, como tentativa de ressuscitar o Império Romano, com poder sobre toda a Europa. Porém o imperador entra em conflito com o papa e há grande dificuldade de submeter os poderes locais. Havia ainda as cidades livres e, dentro delas, as corporações de ofício, com grande autonomia. Não havia, portanto, Estado propriamente dito, mas uma pluralidade e uma sobreposição de centros de poder e ordens jurídicas, que traziam insegurança e levavam a uma aspiração à ordem e à unidade, que foi o germe do Estado Moderno.

e) Estado Moderno. Na baixa Idade Média (Século XI em diante), há um movimento de fuga da opressão feudal e de retorno às cidades em busca de liberdade. Com o crescimento das cidades, surge a burguesia, uma nova classe social de comerciantes que dá apoio à unificação do poder, o que significava paz e segurança para os negócios. Por diversos meios os reis vão unificando a nação e afirmando o seu poder exclusivo sobre um território definido e o respectivo povo, prevalecendo sobre a Igreja, o Império, os senhores feudais e as cidades. O direito é unificado e são criados órgãos de administração (burocracia) e um exército profissional. Forma-se o Estado Moderno, com suas características de soberania e territorialidade, oficializado na Paz de Westfália (1648). Os primeiros Estados modernos a se formarem são monarquias absolutistas (Inglaterra, Portugal, Espanha, França etc.).

Dois episódios ilustrativos. Dois episódios, citados por Dallari, ilustram bem a alteração no equilíbrio de poder na passagem da era medieval para a modernidade. Em 1077, Henrique IV, Imperador da Alemanha, entrou em conflito com o Papa Gregório VII, a respeito da investidura dos bispos (Querela das Investiduras). O Papa o excomungou e ordenou que nenhum Estado cristão o reconhecesse. Para não perder o poder, o Imperador, humilhado, viu-se obrigado a fazer uma peregrinação à cidade de Canossa para pedir perdão ao Papa.
Já em 1301, Filipe, o Belo, rei da França, entrou em conflito com o Papa Bonifácio VIII. Desta vez o soberano venceu a batalha e, em 1303, mandou prender o Sumo Pontífice. Por influência dele, o papado foi transferido de Roma para Avignon, na França.

Elementos do Estado Moderno. Consolidado o Estado Moderno, podem ser identificados seus elementos característicos, que, com algumas variações entre os autores, são: soberania, território, povo e finalidade.

Bibliografia
Leitura essencial: Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo II, itens 28 a 30.
Leitura complementar: Martin van Creveld, Ascensão e declínio do Estado, Caps. 1 e 2. G. Jellinek, Teoría General del Estado, Livro II, Cap. 10.
Filmes: 300; Roma (série); O incrível exército de Brancaleone; A Outra.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Resumo 7 - Estado: origem e formação

II – Do Estado

1 – Origem e formação do Estado
.

“Ninguém nunca viu o Estado. Quem poderia negar que ele seja uma realidade? O lugar que ele ocupa em nossa vida cotidiana é tamanho que não poderia ser retirado dela sem que, ao mesmo tempo, ficassem comprometidas nossas possibilidades de viver” (Burdeau)

Introdução. Atualmente, todos os seres humanos vivem num Estado ou, pelo menos, sob a autoridade de um Estado. O Estado é a sociedade mais importante e mais poderosa no mundo atual. Mas o que é o Estado? Quando surgiu? Por que ele existe? Qual o seu futuro?

Denominação. O que hoje chamamos de Estado já foi chamado pelos gregos de pólis e pelos romanos de civitas. Já foi chamado também de república e império. Na linguagem informal, o Estado é chamado de país (do latim pagos e do italiano paese = lugar geograficamente delimitado e habitado por uma comunidade) e de nação (o que é incorreto, como se verá mais adiante).

Estado. O primeiro teórico a utilizar a palavra Estado para denominar uma sociedade política foi Maquiavel, na obra O Príncipe, de 1513. Segundo Maquiavel, “todos os Estados, todos os domínios que tem havido e que há sobre os homens foram e são repúblicas ou principados”. A palavra “estado” vem do latim status, que significa “estar firme”, sendo coerente com o anseio de Maquiavel de que a Itália da época, dividida em vários pequenos reinos e repúblicas, muitas vezes em guerra entre si, se unificasse sob um poder soberano e obtivesse estabilidade social e política.

Maquiavel. Considerado pioneiro no estudo da política como ciência autônoma, Nicoló Macchiavelli (1469-1527) viveu em Florença, então uma república italiana independente. Em seus estudos procurou desvincular a política da religião e da moral, observando e descrevendo a realidade efetiva, sem idealizações, ou seja, a política como ela é, e não como deveria ser. Segundo sua doutrina, a preocupação principal de um governante deve ser o bem e a segurança do Estado (“razão de Estado”), mesmo que para isso tenha que praticar atos considerados imorais, como mentir ou trair suas amizades. Foi mal compreendido e atacado como se fosse defensor da mentira e da traição, porém o que pretendia era demonstrar que a política tem uma lógica própria, independente da moral e da religião. Nas palavras de Maquiavel, “como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens, e principalmente dos príncipes, o que conta por fim são os resultados. Cuide, pois, o príncipe, de conquistar e manter o Estado: os meios serão julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo está sempre voltado para as aparências e para o resultado das coisas, e não há no mundo senão o vulgo”. Esse tema foi retomado por Max Weber no século XX, quando tratou do que chamou de ética da convicção (princípios éticos pessoais, baseados na moral privada) e ética da responsabilidade (preocupação do governante com o resultado das suas ações para o Estado). Essas idéias de Maquiavel e Weber fazem parte do realismo político, ou realpolitik.

Estado ou estado? Recentemente, a revista Veja anunciou que passaria a grafar a palavra “estado” com inicial minúscula, a fim de marcar sua posição pela mínima intervenção do governo na economia e na sociedade (liberalismo). Lembrou que os países de língua inglesa, onde essa idéia prevalece, a palavra é grifada com minúscula. Já onde há uma interferência maior do governo na sociedade e na economia, como no Brasil e na França, a palavra é grafada com maiúscula. Discordamos dessa idéia, porque entendemos que não é a inicial maiúscula ou minúscula que vai determinar a importância do Estado. Além disso, grafar Estado com minúscula ao ser referir à sociedade política soberana pode trazer confusão com a palavra que indica condição (“estado de saúde”). Segundo o dicionário Houaiss a inicial deve ser maiúscula.

Surgimento o Estado. Há, basicamente, três teorias sobre a época de surgimento do Estado:
a) O Estado, assim como a sociedade, existe desde que o ser humano surgiu na Terra.
b) O Estado é produto da evolução natural da sociedade humana e foi precedido por outros tipos de sociedades, como tribos, clãs etc. Surgiu em diferentes épocas conforme o grau de evolução de cada sociedade. É a teoria mais aceita atualmente.
c) O Estado surgiu somente quando adquiriu características bem definidas, principalmente a idéia de soberania (poder máximo e exclusivo sobre um determinado território habitado por um povo), que só aparece no Estado Moderno. Alguns autores chegam a afirmar que a data do surgimento do Estado foi a Paz de Westfália, em 1648.

Paz de Westfália. Independente de ser ou não o marco do surgimento do Estado Moderno, a Paz de Westfália (1648) foi um marco importante na história da política, porque, pondo fim à Guerra dos 30 anos, resultou no reconhecimento das fronteiras geográficas dos Estados europeus, dentro das quais estes poderiam exercer o poder de forma soberana, excluindo o poder do imperador e do papa e unificando a nação.

Explicações para o surgimento do Estado. Tentando explicar a formação original de Estados, há basicamente duas teorias, que correspondem às teorias sobre a formação da sociedade humana:
a) formação natural ou espontânea: o Estado se forma naturalmente, por evolução de outras formas de sociedade
b) formação contratual: o Estado se forma por um ato de vontade, a partir de uma decisão racional (contratualismo)

Causas determinantes da formação de Estados. Estudando as causas que deram origem ao Estado, há as seguintes teorias:
a) Origem familial ou patriarcal: desde Adão e Eva, cada Estado surgiu a partir de uma família, chefiada por um patriarca (teoria sustentada por Filmer para justificar o absolutismo e que foi refutada por Locke no Primeiro Tratado sobre o Governo)
b) Atos de força e dominação. Segundo autores como Oppenheimer, os Estados se formaram a partir da dominação de um grupo sobre outro, sendo criados para regular as relações entre vencedores e vencidos
c) Fatores econômicos ou patrimoniais. Teóricos como Platão e Marx & Engels sustentam que o Estado surgiu por motivos econômicos ou patrimoniais. Platão afirma que o Estado deriva da necessidade de cooperação e divisão do trabalho entre as pessoas. Segundo o materialismo histórico de Marx e Engels, o Estado surgiu com a evolução da sociedade, a partir do estabelecimento da propriedade privada, como um instrumento para a dominação de proprietários sobre não-proprietários. Segundo eles, o Estado está fadado a desaparecer quando for eliminado esse tipo de relação.

Em sua obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels, baseado nos estudos antropológicos de Morgan, expõe a sua visão materialista da história, segundo a qual os meios de produção determinam a organização social. Morgan divide a evolução social da humanidade em três grandes estágios: Selvagem, Barbárie e Civilização, cada um deles subdividido em três fases: inferior, média e superior. Todos os povos passam por esses estágios em diferentes épocas da história.

Estágios da civilização: a) Selvagem: inferior (parcialmente nas árvores), médio (fogo, linguagem, instrumentos de pedra), superior (arco e flecha, aldeias). b) Barbárie: inferior (cerâmica, criação de animais, cultivo de plantas), média (irrigação, criação de gado, construções de pedra e tijolo), superior (escrita, arado de ferro). c) Civilização: inferior (cidades, artes), média (indústria), superior (não atingida).

Segundo Engels, no estágio selvagem, prevalecia a promiscuidade sexual no interior das tribos. A partir da barbárie inferior, as tribos começam a ser divididas em gens (grandes famílias), segundo a linhagem feminina (matriarcado), com proibição do casamento endogâmico (no interior das gens). A seleção natural privilegiou esses grupos. Nesse estágio a mulher desempenhava papel preponderante, não havia divisão de classes sociais e a propriedade dos meios de produção era comum (comunismo).

Na fase média da barbárie, com a criação de animais e a agricultura, surge a noção de propriedade privada dos meios de produção, o homem passa a preponderar e a exigir fidelidade da mulher para garantir a herança de sua prole (patriarcado). O Estado surge para legitimar essa nova realidade e garantir a divisão da sociedade em classes. Segundo Engels, as contradições desse sistema levarão à sua destruição, com o conseqüente desaparecimento do Estado.

d) Formação do Estado pelo desenvolvimento natural da sociedade: O Estado se forma naturalmente pela evolução da sociedade, que num determinado momento sente a sua necessidade, independentemente de fatores externos e sem preponderância de um fator (R. Lowie). É a teoria mais aceita atualmente.

Modos de formação. A doutrina distingue os seguintes modos de formação dos Estados:
a) modo originário: quando um Estado surge onde antes não havia Estado nenhum (casos estudados acima, não existem exemplos atuais)
b) modo derivado: quando novos Estados surgem a partir de Estado ou Estados pré-existentes. O modo derivado pode ocorrer por fracionamento (ex.: antigas colônias que se tornaram independentes; República Tcheca e Eslováquia, surgidas da antiga Tchecoslováquia) ou por união (ex.: EUA)
c) modo atípico (não-usual): formação artificial, por tratado ou por imposição de outras potências (ex.: Vaticano, as duas Alemanhas, Israel)

Momento do nascimento. Não há uma regra definida para garantir que um novo Estado foi criado. Basicamente, é necessário que haja viabilidade interna (estabilidade social, política e jurídica) e reconhecimento pelos demais Estados. Normalmente, quando esses dois fatores ocorrem, o novo Estado é aceito na ONU, mas isso não é condição essencial para a existência de um Estado.

O caso do Kosovo. O Kosovo é um território habitado por albaneses étnicos que fazia parte da Federação Iugoslava e foi palco de uma guerra civil nos anos 90, quando foi atacado pelo governo iugoslavo e defendido pela OTAN. Após negociações fracassadas, declarou unilateralmente a independência, sendo reconhecido como Estado por EUA e França, mas não pela Rússia e pela Espanha. Ainda não obteve ingresso na ONU. Suas instituições governamentais ainda são precárias. Por tudo isso, ainda não pode ser considerado como um Estado consolidado.

Bibliografia
Leitura essencial: Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo II, itens 23 a 27.
Leituras complementares: F. Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, caps. I a IV. Martin van Creveld, Ascensão e declínio do Estado, Cap. 1. F. Weffort, Os clássicos da política, Cap. 2 (Maquiavel).

terça-feira, 8 de março de 2011

Marxismo e Determinismo

Como sempre ocorre, também este ano causou certa polêmica minha afirmação de que o Marxismo é um exemplo de determinismo. Respeitando as opiniões contrárias, recomendo a leitura do filósofo Karl Popper, de onde retirei o exemplo. O texto abaixo é uma resenha de um dos seus mais famosos livros, "A sociedade aberta e seus inimigos".

Sociedade aberta e seus inimigos, de Karl Popper

A Sociedade Aberta e seus Inimigos, de Karl Popper (1902-1994), foi publicada (1945) num momento em que o caráter totalitário do regime soviético ficara obscurecido em decorrência da aliança da União Soviética com o Ocidente, contra o nazismo. Logo adiante, na medida em que os russos logram impor o seu odioso sistema a sucessivos países no Leste europeu, a pertinência do alerta de Popper iria tornar-se evidente, assegurando o sucesso da obra e a sua sucessiva reedição.

Para muitos segmentos da sociedade, a União Soviética estava associada ao socialismo, criação ocidental francamente caudatária da tradição cristã. Os fundadores do socialismo, no século XIX, associaram-no à idéia cristã da fraternidade universal. Ao mesmo tempo, entretanto, tinha-se consciência de que o bolchevismo inseria uma componente despótica inquestionável, amesquinhadora da pessoa humana, entrando em franca contradição com o cristianismo. Os socialistas alemães, ao longo da década de 20, advertiram quanto à verdadeira característica do regime soviético, movendo uma crítica demolidora, notadamente às idéias de “socialismo científico” e “ditadura do proletariado”. Contudo, nos anos 30, ao formar inicialmente contra o nazismo, os russos e seus seguidores no Ocidente turbaram de alguma forma aquela consciência. Embora a aliança entre os dois totalitarismos haja sido recomposta com a assinatura do Pacto Germano-soviético, em 1937, a invasão da União Soviética pela Alemanha, em 1941, e o ingresso desta na Aliança Ocidental criou a ilusão de que o regime soviético poderia caminhar no sentido da democracia. O seu empenho de domínio da Europa, nos anos subseqüentes ao término da guerra, acabaria evidenciando o irrealismo daquela expectativa. Neste particular é que o livro de Popper tornou-se um verdadeiro marco, ao identificar e criticar os fundamentos doutrinários dos inimigos do sistema democrático representativo vigente nos principais países do Ocidente, que batizou com a feliz expressão de sociedade aberta.

Karl Popper era austríaco de nascimento e emigrou de sua pátria, em 1935, para escapar ao nazismo, primeiro para a Inglaterra e depois para a Nova Zelândia. A partir de 1949 radica-se na Inglaterra, onde cria, na London School of Economics, um grupo de estudiosos da filosofia das ciências que viria a se tornar um dos mais importantes do Ocidente.

Popper contribuiu grandemente para superar a visão oitocentista que se tinha da ciência, segundo a qual repousava na observação, sendo o método indutivo sua base primordial. Inverteu essa relação ao reconstituir minuciosamente o trabalho do cientista, no livro que denominou de Lógica da Investigação Científica (1935). A ciência parte de hipóteses, formuladas por quem está habilitado a fazê-lo, estando sujeitas à refutação. Ao mesmo tempo, submeteu a indução a uma crítica demolidora. Assim, em suas mãos a ciência deixa de ser algo dogmático e concluso para exercitar-se em limites perfeitamente estabelecidos, além de experimentar avanços e recuos. Sua obra como filósofo das ciências é integrada por significativo conjunto de textos, entre os quais destacam-se, além do livro citado, Conjecturas e Refutações: o desenvolvimento do conhecimento científico (1962) e Conhecimento Objetivo (1972). Nos últimos anos de vida publica o que chamou de Post Scriptum à sua meditação sobre as ciências. Essa parcela de sua obra, pelo que tem de mais representativo, está traduzida ao português.

Com A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Popper notabilizou-se igualmente como pensador político. Sua proposta fundamental consiste em aplicar, à organização social, o mesmo método que desenvolveu em relação à ciência. Se o crescimento desta depende da derrota do dogmatismo, também a democracia não pode sobreviver à existência de verdades irrefutáveis. A sociedade aberta é uma conquista da civilização, corresponde ao sistema concebido e praticado pelo homem maduro, que recusa ser tratado como criança pelo Estado, aceita todas as suas responsabilidades – entre as quais inclui não apenas direitos mas também deveres –, reconhece a impossibilidade do paraíso terrestre e desdenha das utopias socialistas.

No entendimento de Popper, a civilização começa com sociedades fechadas, organizadas em bases tribais, repousando as relações sociais na rigidez dos costumes, geralmente fundados em crenças mágicas. Na Grécia iniciou-se uma outra experiência de criar um espaço para a responsabilidade pessoal. A obra de Platão está destinada a obstar essa mudança. Popper enxerga na teoria política platônica a origem do totalitarismo, razão pela qual submete-a a uma crítica profunda.

Platão desenvolve a teoria de que os seres e as instituições existentes são cópias imperfeitas de idéias imutáveis, cumprindo reconstitui-las como ideal a fim de dispor de uma espécie de arquétipo. No caso do Estado, o ideal deveria refletir aqueles aspectos presentes aos Estados existentes. O critério para identificá-los consiste nas estruturas que se tenham revelado mais duradouras, isto é, que impeçam as mudanças. A origem destas provém da desunião da classe governante, cumprindo portanto substitui-la pelo sábio (filósofo). O modelo que estaria mais próximo do Estado ideal seria Esparta, onde vigorava uma espécie de ditadura dos mais experientes.

Como vimos na breve caracterização precedente de A República o remédio de Platão consiste numa operação de enquadramento da sociedade de forma que nesta não venha a prosperar qualquer espécie de individualismo.

Segundo Popper, coube a Hegel proceder à reelaboração moderna do totalitarismo platônico, tendo se tornado o “elo perdido” que permite identificar as origens do totalitarismo em nosso tempo. Como Platão, Hegel irá ocupar-se em sua obra de demonstrar que o Estado é tudo e, o indivíduo, nada. Sua doutrina mereceu de Popper caracterização e análise exaustivas.

Tal é, no entendimento de Popper, o verdadeiro suporte do marxismo. Na sua abordagem de idéias de Marx, torna-se patente o equívoco da suposição, algo difundida no Ocidente, de que o bolchevismo corresponderia a uma distorção do “humanismo” de Marx. Popper demonstra que Marx apóia-se numa consideração apresentada como sendo resultante da experiência histórica mas que, de fato, não passa de um determinismo sem qualquer suporte científico. No livro estão considerados ainda o economicismo, a luta de classes, a teoria de que o Estado é uma espécie de comitê da classe dominante, o advento do socialismo, a revolução social e o relativismo moral.

Finalmente, Karl Popper repõe em seu devido lugar o papel da história. Nesse particular, cumpre ter presente que sua crítica ao que denomina de historicismo tem em vista a suposição de que haveria determinismos históricos. Na tradição anglo-saxônica o emprego do termo não induz a equívocos, o mesmo entretanto não ocorrendo na tradição latina. Nos países latinos há uma longa tradição historicista que consiste no inventário dos valores que caracterizam a cultura ocidental, justamente o que Miguel Reale denominou de historicismo axiológico. Popper vale-se justamente dessa espécie de historicismo ao reivindicar para a sociedade aberta aqueles princípios que se fundam no valor da pessoa humana, uma das características distintivas de nossa civilização. Embora na tradução não coubesse adotar outro termo, cumpre levar em conta o sentido em que o emprega e de que tradição se louva para fazêlo.

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos inicia um ponto de inflexão a partir do qual a doutrina liberal encontrou o caminho que o levaria, nas décadas seguintes, a impor ao comunismo totalitário uma derrota que se espera seja definitiva.

Fonte:
http://www.videeditorial.com.br/dicionario-obras-basicas-da-cultura-ocidental/r-s/a-sociedade-aberta-e-seus-inimigos-de-karl-popper/Imprimir.html

terça-feira, 1 de março de 2011

Resumo 6 - Sociedades Políticas

I – Da Sociedade (continuação)

3. As sociedades políticas


“De fato, os homens vivem na sociedade e em sociedades. Vivem na sociedade global e vivem nos grupos sociais de que a sociedade global é constituída” (Goffredo Telles Jr.)

Sociedades humanas. Goffredo Telles Jr. ensina que, ao contrário do que ocorre com os animais gregários, no ser humano a sociedade é natureza e é contrato. O ser humano tem necessidade de viver em sociedade, mas decide racionalmente quando e como vai fazer isso. Para os animais, a sociedade é um fim em si mesmo. Para o ser humano, a sociedade é um meio para satisfazer suas necessidades e atingir seus objetivos.

Processo de integração social. Conforme Goffredo Telles Jr., as sociedades primitivas eram muito simples e homogêneas. Com a evolução, veio a divisão de tarefas e a formação de grupos, num processo de diferenciação dentro de uma mesma sociedade, que vai se tornando mais complexa. Porém, os grupos são interdependentes e daí surge a necessidade de uma coordenação entre eles, estimulando a solidariedade, na busca do bem comum.

Espécies de sociedades. A sociedade global é composta de inúmeras sociedades, que têm por fim satisfazer as necessidades e realizar os objetivos dos seres humanos. Vários autores procuraram classificar os diversos tipos de sociedade. Resumindo as diversas teorias, Dallari divide as sociedades em duas espécies: a) sociedades de fins particulares ou específicos (escolas, igrejas, clubes, empresas); b) sociedades de fins gerais, ou sociedades políticas, cujo objetivo é criar condições para a consecução dos fins particulares (família, tribo, cidade, Estado etc.).


Estado. O Estado, portanto, é uma sociedade política, que tem por finalidade o bem comum dos seus cidadãos, isto é, através do seu funcionamento, criar condições de vida social para que as demais sociedades de fins particulares nele contidas possam servir para a expressão e o desenvolvimento da personalidade humana em todos os seus aspectos.


Leitura essencial: Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo I, itens 21 e 22.
Leitura complementar: Goffredo Telles Jr., O povo e o poder, Cap. I.

Resumo 5 - Elementos da Sociedade - Poder

I – Da Sociedade (continuação)
2. Elementos característicos da Sociedade (continuação)
c) Poder


“Se procurarmos o que é permanente no poder enquanto passam as figuras que exercem seus atributos, vemos que ele não é tanto uma força exterior que viria pôr-se a serviço de uma idéia quanto a própria força dessa idéia” (Burdeau)


Introdução. O terceiro elemento característico da sociedade, depois da finalidade e das manifestações de conjunto ordenadas, é o poder. Trata-se de um dos conceitos mais importantes da Ciência Política e da Teoria do Estado. Max Weber define o poder como “toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”. Todas as sociedades são dotadas de poder, mas o poder do Estado é o mais importante, pois ele detém o monopólio do uso da força (coerção).

Características do poder. O poder é um fenômeno social, porque está presente em qualquer sociedade: família, escola, igreja, Estado etc. É também fenômeno bilateral, porque implica sempre uma vontade predominante e outra submetida. Pode ser analisado como relação (sujeitos) ou como processo (dinâmica, funcionamento). O poder é necessário? O que o justifica?

Anarquismo. “Anarquia” vem do grego e significa ausência de governo (arkê). As teorias anarquistas negam a necessidade e a legitimidade do poder. Há basicamente três linhas consideradas anarquistas: alguns movimentos filosóficos gregos, os cristãos primitivos e o movimento anarquista moderno.

Anarquistas gregos. Na Grécia antiga, os cínicos pregavam a vida de acordo com a natureza; os estóicos pregavam a igualdade e a fraternidade universal; os epicuristas pretendiam viver segundo o princípio do prazer. Nenhuma dessas correntes aceitava como legítimo o poder de um homem sobre outro.

O anarquismo cristão. Os primeiros cristãos não aceitavam a autoridade terrena, embora Jesus tivesse feito a distinção entre o que é de César e o que é de Deus. São Paulo pregava que todo poder vem de Deus, mas recomendava a submissão ao poder de Roma. Santo Agostinho, na Idade Média, escreveu “A Cidade de Deus”, em que o chefe seria o Cristo. Porém, o que prevaleceu no catolicismo foi a aceitação do poder temporal, seja aliando-se a ele, seja buscando o seu exercício pela própria Igreja.

O movimento anarquista. No século XIX surgem várias correntes anarquistas, a maioria delas influenciada pelo socialismo, que pretende extinguir o Estado por considerá-lo um instrumento da dominação dos ricos sobre os pobres.

O anarquismo de cátedra. Limitando-se à teoria, Léon Duguit afirma que o poder é um fato, baseado em crenças ou fatores materiais, mas é ilegítimo e desnecessário.

Anarquismo militante. Esse movimento pretendia colocar em prática seus objetivos, que eram a eliminação do Estado, da propriedade privada e da religião e a implantação de relações sociais livres, fundadas na solidariedade humana. Para Proudhon, “toda propriedade é um roubo”. Bakunin pregava a revolução por meios violentos e polemizou com Marx, por este aceitar a tomada do poder pela via eleitoral e uma fase de transição em que o Estado manteria o poder. Kropotkin preferia a via pacífica e sustentava que a cooperação é uma força mais importante para a evolução do que a competição. Os anarquistas praticaram atos terroristas no final do século XIX e início do século XX, e a partir disso o movimento foi perdendo força. No Brasil, imigrantes anarquistas italianos e espanhóis promoveram a greve geral de 1917.

“O governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmo e a suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso, não conhece a natureza humana” (Mikail Bakunin (1814 - 1876).

O poder necessário. A maioria dos teóricos entende que o poder sempre existiu e é necessário para manter a ordem e a coesão na sociedade, bem como para dirigi-la na busca das suas finalidades. Importa, assim, estudar o fundamento em que se baseia (origem, justificação) e verificar a sua legitimidade (aceitação social).

A busca de um fundamento para o poder.
Força. Nas sociedades primitivas, o poder era baseado exclusivamente na força (primeiro física, do guerreiro mais forte, depois econômica). Todavia, segundo Rousseau: “o mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever”.

Divindade. Já na antiguidade, passou-se a fundamentar o poder na divindade, surgindo os impérios teocráticos (Egito, Babilônia etc.). O mesmo ocorreu no início do Estado Moderno, com as monarquias absolutistas, que sustentavam o direito divino dos reis ao poder.

Povo. Desde a Idade Média, há uma linha de pensamento, que tomou força com o Estado Moderno, que considera povo como titular do poder. Dessa linha resultaram o contratualismo e democracia, em que a vontade do povo (vontade geral) é o fundamento do poder.

Poder x Direito. A partir do século XIX, com a consciência de que o poder usa a força, mas não se confunde com ela, surge a aspiração de fazer coincidir o poder (fenômeno de fato, político) com o direito (regras e limites para o exercício do poder). Alguns procuraram basear o poder exclusivamente na lei (Estado de Direito).

Culturalismo Realista. Segundo Miguel Reale, porém, poder e direito não se confundem, mas são fenômenos concomitantes, que sempre coexistiram nas sociedades (ubi societas, ibi jus; ubi jus ibi societas). O que varia é apenas o grau de juridicidade, conforme o estágio de evolução cultural de cada sociedade (Culturalismo). Assim, se numa sociedade primitiva prevalece a força, esta sempre é exercida segundo uma regra, mesmo que seja aquela imposta pelo mais forte. Já nas sociedades mais evoluídas, o poder é quase que inteiramente exercido conforme as regras jurídicas.

Legitimidade do Poder. Considerando que poder e direito não se confundem, a legitimidade do poder também não coincide necessariamente com a legalidade. Pode haver governos legais, mas ilegítimos (ex.: o Egito durante a ditadura de Mubarak) e governos legítimos, mas ilegais (ex.: o Egito depois da queda da ditadura, enquanto houver apoio popular).

Max Weber (1864-1920). Em estudo que se tornou clássico, o sociólogo e cientista político alemão Max Weber considera que existem três formas de poder legítimo:
Tradicional: próprio das monarquias, independe da lei formal (ex.: as antigas monarquias europeias)
Carismático: baseado nas qualidades excepcionais do líder (carisma), que procura ligação direta com o povo, muitas vezes contra a lei (ex.: Hitler, o populismo latino-americano, Lula)
Racional ou burocrático: autoridade impessoal, derivada da lei, única forma em que poder e direito necessariamente coincidem (ex.: as modernas democracias liberais)

Importante notar que essas três formas ideais de poder legítimo dificilmente se encontram isoladas, sendo mais comum que se apresentem de forma combinada.

Georges Burdeau (1905-1988). Segundo Burdeau o que legitima o poder é a sua atuação. Poder legítimo é o poder consentido, aceito pela comunidade, porque encarna a força da idéia de bem comum.

Despersonalização e racionalização do poder. Busca-se, atualmente, a objetivação (despersonalização) e a racionalização do poder (governo baseado na lei, fruto da vontade popular e não da vontade do governante).


Leitura essencial: Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo I, itens 11 a 20.
Leituras complementares: Miguel Reale, Teoria do Direito e do Estado, Cap. IV, item 92. Georges Burdeau, O Estado, Cap. I. Reinaldo Dias, Ciência Política, Cap. 2. Max Weber, “A política como vocação”, in Ciência e política – duas vocações.